O que faz o Brasil no Haiti?

O que faz o Brasil no Haiti?

Por Emir Sader | 23 de Junho de 2004

 
O envio de tropas brasileiras para o Haiti inaugura uma nova etapa na política externa brasileira. Desde o começo do governo Lula a política externa brasileira havia ganhado uma nova cara, com o privilégio do Mercosul em um projeto ampliado de integraçăo regional, com um caráter mais político -, com a constituiçăo do Grupo dos 20 a partir da reuniăo da OMC em Cancun e a organizaçăo de uma política de alianças diretas com a África do Sul, a Índia e a China.

Há tempo o Brasil reivindica um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança das Naçőes Unidas. Uma política externa mais agressiva e o prestígio internacional de Lula levaram a uma intensificaçăo dessa campanha, que recebeu várias adesőes significativas como as da Franca e da China, entre outras. No momento em que o Brasil assumiu, neste ano, o posto de membro rotativo do Conselho de Segurança, submeteu sua atuaçăo a um teste de como se comportaria caso estivesse ali como membro permanente.
No Conselho de Segurança foi apresentada a proposta de substituiçăo das tropas norte-americanas e francesas por um contingente enviado pela ONU, chefiado pelo Brasil. O governo brasileiro, por sua vez, recebeu solicitaçőes de países centro-americanos, preocupados com a intervençăo militar dos EUA, de que o Brasil ocupasse o lugar dos norte-americanos.
O governo brasileiro se viu nessa situaçăo, como membro do Conselho de Segurança, pressionado dentro do Conselho e fora, para assumir um papel na área, substituindo os EUA. Além disso, como país importante da área latino-americana e, mais ainda, como candidato a membro permanente do Conselho de Segurança, o governo brasileiro aceitou liderar o contingente de tropas no Haiti.
Essa decisăo teve graves implicaçőes. Em primeiro lugar, o Brasil referenda a forma pela qual Aristide foi tirado do governo. Trata-se de uma atitude perigosa porque, além das controvérsias sobre a queda de Aristide, abre um precedente delicado para uma área com tantos países eventuais candidatos a ser considerados passiveis de intervençőes por situaçőes de grave crise institucional de que a Venezuela e a Bolívia săo apenas alguns exemplos.
Em segundo lugar, a situaçăo interna do Haiti leva a que uma intervençăo militar tenda a ter um caráter prolongado e, desde o começo, tenha que se enfrentar com grupos armados, de resistęncia política ou năo, correndo o risco de choque que podem ter conseqüęncias trágicas. A possibilidade de haitianos mortos por tropas latino-americanas de brasileiros, argentinos, de chilenos seria trágica. Os EUA conseguiriam colocar em prática um projeto acalentado há muito tempo invocado para o caso colombiano sem maior receptividade: o de ter tropas regionais para cumprir funçőes de estabilizaçăo política e militar.
A condiçăo caótica em que se encontra o Haiti, somada ŕ presença de tropas estrangeiras, pode fazer com que seja muito difícil construir uma saída política em um prazo visível, o que prolongaria a presença militar e aumentaria o risco de caracteriza-la como ocupaçăo prolongada de um país latino-americano por tropas de outros países.
A posiçăo brasileira pode ser interpretada como uma tentativa năo apenas de afirmar-se como liderança regional, mas como projeto de afirmaçăo como aliado confiável das grandes potęncias membros permanentes do Conselho de Segurança das Naçőes Unidas a que o Brasil pretende ingressar nessa qualidade.
Quando se diz que se trata de uma apoio ŕ reconstruçăo do Haiti, năo se entende porque săo enviadas tropas paraquedistas, marinheiros, infantaria e năo, por exemplo, educadores, médicos, sanitaristas. Claro que o estabelecimento de um mínimo de estabilidade é um requerimento necessário ŕ busca de uma soluçăo para a crise haitiana. Mas tropas estrangeiras, sem um prazo com possam se comprometer com uma situaçăo de estabilidade para o país, dificilmente podem colaborar para essa estabilidade.
Estando lá, com contingente militar, o Brasil e outros países latino-americanos, assumem responsabilidades graves: năo podem garantir que estăo encaminhando uma soluçăo aceita pelo povo haitiano; podem se ver envolvidos em sérios conflitos armados; podem estar desempenhando o papel de gendarmes regionais de uma política imperial que considera que algumas regiőes e paises do mundo năo estăo em condiçőes de se autogovernar, tendo necessidade de ser tuteladas, de forma imperial.
A questăo essencial é saber se há alternativas a essa política, com todos os seus riscos. Em primeiro lugar, independentemente do julgamento que se tenha sobre o governo de Aristide, qualquer atitude que legitime sua derrubada por meio de uma intervençăo militar estrangeira é perigosa. Em segundo, se se trata de buscar um apoio externo ŕ soluçăo da crise, cujos destinos devem estar nas măos do povo haitiano, deve-se buscar apoio no Caricom o órgăo que coordena os países da regiăo caribenha. A açăo do Conselho de Segurança é externa ŕ área. Para confirmar esse caráter externo da operaçăo, foram utilizadas as tropas dos EUA e da Franca e se entregou a direçăo a um personagem político sem nenhum enraizamento nas forças sociais e políticas democráticas do Haiti.
Um manifesto com mais 11 assinaturas, incluindo a Eduardo Galeano, Ana Esther Ceceńa, Marilena Chauí, Cristovam Buarque, Fernando Morais,entre outros, foi entregue ao Ministério de Relaçőes Exteriores do Brasil, com preocupaçőes similares ŕs manifestadas neste artigo.
Agora a operaçăo de substituiçăo pelas tropas sul-americanas está em andamento. Lutemos para que dure o menor tempo possível e para que dę lugar a uma soluçăo legítima, interna, apoiada nas distintas formas de organizaçăo do povo haitiana vítima de mais uma intervençăo externa na sua história, desde que propiciaram a primeira derrota do colonialismo na América Latina.

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Publicado por el Programa de las Américas del Interhemispheric Resource Center (IRC). Todos os direitos reservados.
Citaçăo recomendada:
Emir Sader, “O que faz o Brasil no Haiti?,” Programa de las Américas (Silver City, NM: Interhemispheric Resource Center, 23 de Junho de 2004).

Posiçăo no Internet:
http://www.americaspolicy.org/commentary/2004/port-0406haiti.html
Informaçăo Da Produçăo:
Escritor: Emir Sader
Produçăo e projeto: Chellee Chase-Saiz, IRC

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